A Nível de Myself

sexta-feira, março 18

Atenção, senhores passageiros...

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Ontem eu me dei conta de uma coisa. Para conseguir escrever, só é preciso duas coias: saber o be-a-bá... e ler. Eu tinha parado de escrever porque eu tinha parado de ler. E ontem eu peguei "Blecaute", do Rubens Paiva, pra ler. E pronto, já comecei a enxergar a vida com olhos de escritor de novo. Se não de escritor, pelo menos de blogeiro. Segue o texto.

E atenção, ele não é 100% real.
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Lá estava ele, na verdade eu. Pasta na mão, livro na pasta, marca páginas no livro. Parado logo atrás da linha amarela, na estação, esperando o trem. Olha para frente, vê uma parede com os dizeres "Não ultrapasse a linha amarela até que o trem pare" ou algo assim. Tá bom, OK. Eu não pretendia, mesmo.

Olha para a esquerda, uma menina baixinha, mas com cara de má, mascando chiclete. Usava uma daquelas blusas que têm o nítido objetivo de deixar à mostra um pedaço de barriguinha sarada. O problema desse tipo de blusa é que elas somente ressaltam uma barriguinha sarada se houver alguma barriguinha gostosa para ser ressaltada. Não era o caso.

Olha para a direita, um senhor de idade com um livro de inglês na mão, treinando pronúncia. Claro! Há lugar melhor para treinar pronúncia do que uma estação de trem? Ficar lá, lendo e repetindo, de acordo com o livro: "Frúl", "Eniuei", "Érplein", "Méreidje", "Ofcórs"... Claro que eu não me importo. Claro que não. Nem um pouco. Mas ele bem que poderia ir um pouquinho mais para lá, né?

Me abstraio do som da menina mascando chiclete (sim, ela insistia em fazer barulho) e do som das pronúncias do velho (por mais que elas nem estivessem erradas). Procuro me concentrar em algum pensamento meu e exclusivamente meu. Quase consigo. Quase. Quase, porque ouvi um grito. Algo como "aeeeeee!!". Mas era muito alto e vinha de longe. Olho para de onde meu cérebro me disse que veio o som. Vejo um corinthiano. Depois outro, outro, outro e mais outros. Chegando sem parar e aumentando o barulho e a gritaria de maneira proporcional à quantidade deles, entrando na escada rolante, em direção á plataforma de embarque. Claro, torcida organizada do Corínthians! Isso é que emoção. Trato de segurar a minha pasta mais firmemente contra o corpo, além de cobrir com ela o bolso da calça onde o celular fazia um pequeno volume. Vejam bem, eu não tenho nada contra corinthianos. De acordo com as atitudes deles, eu teria medo mesmo que eles vestissem camisetas com dizeres "Eu amo Jesus", "Deus é amor", "Salvem as Baleias" ou "Animais são amigos, não comida. Seja vegetariano".

Eis que surge o único som capaz de ser maior do que todos esses outros sons. O trem finalmente vem chegando, como um professor que entra na sala pedindo silêncio enquanto todos os alunos conversam entre si. Bom, na verdade seria mais como um professor que entra na sala fazendo ainda mais barulho do que os alunos.

Começa o capítulo dois do Terror na Estação: as pessoas saem sabe-se lá de onde para se amontoarem na frente das portas dos trens. Mão na bunda, encoxadas, pisões no pé e cotoveladas não são nada mais do que coisas corriqueiras, nesse momento. Por que diabos as pessoas não raciocinam? Elas olham para dentro do vagão, pela janela, e vêem dois bancos vagos. No entanto, há umas vinte pessoas se amontoando na porta. Será que as dezoito pessoas de trás não podem simplesmente raciocinar que não vão conseguir sentar de jeito nenhum, deixando que somente as duas pessoas da frente corram para os bancos? Fica a questão.

Como eu fazia parte das dezoito pessoas (número aproximado) que não estavam na frente da porta, portanto as que não iam se sentar, me dirigi calmamente até a barra de metal mais próxima, me segurei nela, tirei o livro da pasta (fechando-a e colocando-a entre as minhas pernas logo em seguida) e comecei a ler. Sim, porque viagens duram até quatro vezes menos se a gente estiver lendo, comprovam os cientistas. (Os homens podem inventar estatísticas para provar qualquer coisa! 14% das pessoas sabem disso!*)

Comecei a ler o primeira parágrafo, e... "Crooooooocante Nestlé! É o crooooooooocante Nestlé! Só cinquenta, tá barato, é o croooooooocante Nestlé!" (Vocês sabem como falam os vendedores de trem, né? Sem vírgulas.)

Ok, dá pra aguentar. Comecei a ler o segundo parágrafo e... "Há! Olha o tamanho do lápis de Itu! Do prézinho à faculdade é o lápis de Itu! Só um real é o lápis de Itu! É o lápis de Itu, o lápis que não acaba mais!"

Na próxima estação, sobe um homem e, enquanto eu começava de novo o primeiro parágrafo... "Boa noite meus amigos e minhas amigas. Eu tenho um pobrema no braço e não consigo arranjar emprego. Minha mulé me abandonô e eu tenho dezessete filho pá criá. Eu podia tá matano, eu podia tá robano, mas eu tô aqui, vendendo esses chicré que é pra ajudá criá meus filho! Muitobrigado, gente!"

E era o vendedor de crooooooooooooooocante Nestlé e era o vendedor do lápis de Itu e era o pedinte vendendo chicré e era o negão dando sopapo no outro e era a mulher gritando com os filhos e era o velhinho treinando pronúncia e era a menina mascando chiclé e era o vendedor de adesivo e era "Cocacervejágua mineral!" e era tudo isso ao mesmo tempo e era eu tentando ler e era eu jogando o livro no chão e era eu gritando DÁÁÁÁ PRA CALAR A BOCA QUE EU TÔ TENTANDO LER!!!!!!!? CARALHO!!!!!!

Tá, eu não fiz isso.

Mas fiquei o resto da viagem imaginando como teria sido se eu tivesse feito.

*Créditos a Homer Simpson pela piada.